Célula humana modificada em laboratório funciona como uma espécie de transportadora de medicamentos antitumorais. Baixa rejeição e ação apenas na área afetada estão entre as vantagens do tratamento pensado por um brasileiro

 

Correio Braziliense 14/11/2016 04:00

 

unnamed

Aandre Birbrair iniciou os estudos em Belo Horizonte e deu continuidade com uma equipe de cientistas dos EUA

Belo Horizonte — Modificada geneticamente e acrescida do vírus HIV inativo, uma célula do corpo humano pode se transformar na nova arma contra o câncer de cérebro mais frequente: o glioblastoma. A solução produz uma proteína antitumoral e se desloca diretamente até a área doente, segundo a equipe de cientistas que a desenvolveu, incluindo o biomédico Alexandre Birbrair, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Testes com camundongos comprovaram a eficiência da técnica, detalhada recentemente na revista científica Steam Cells.

Birbrair conta que, em seu estudo sobre células neurais cerebrais ainda nos laboratórios da UFMG, ele percebeu que as células-tronco neurais eram atraídas pelo glioblastoma e migravam até ele. O pesquisador cogitou a possibilidade de essas estruturas assumirem uma função transportadora, ou seja, serem usadas para levar um medicamento diretamente às partes da cabeça afetadas pelo câncer, isentando as saudáveis.

Porém, as células neurais cerebrais são produzidas unicamente pelo cérebro e, para fazer uma biópsia, seria necessário remover um pequeno pedaço dele, o que inviabiliza o cultivo da solução em laboratório. Fazendo biópsia de células-tronco do músculo esquelético, Alexander e sua equipe descobriram que a célula chamada pericito, quando mudada geneticamente, adquire a mesma função migradora das células neurais cerebrais. Por ser criada no farto e acessível sistema musculoesquelético, a pericito tem um cultivo viável.

unnamed (1)

Células com o remédio (verdes) migram para as tumorais (vermelhas)

Após a descoberta dessa nova célula, que, modificada, virou a neural-like stem cells (NLSC), Birbrair entrou em contato com um cientista especialista em glioblastoma da Universidade de Wake Forest, na Carolina do Norte, nos Estados Unidos, onde deu continuidade à sua pesquisa. Na etapa seguinte, os parceiros testaram em camundongos com glioblastoma se a célula modificada seria capaz de migrar até as estruturas doentes.

“Em um lado do cérebro, colocamos células do tumor, que foram tingidas de vermelho. Do lado oposto, as células modificadas, com a cor verde. Essas não só migraram para o tumor primário, como também foram para todas as extremidades, inclusive para os tumores secundários. Acreditando que elas são boas carregadoras, entregaríamos para as células ‘coisas’ que podem destruir o câncer”, explica o biomédico brasileiro.

Para combater o glioblastoma, os cientistas verificaram que a proteína chamada trail tinha resultado comprovado. Contudo, ela é barrada pela membrana protetora do cérebro, a hematoencefálica. Seria então necessário fazer com que a própria célula modificada produzisse a proteína. “Para isso, usamos um vírus HIV modificado (sem a carga viral, para não contaminar as pessoas), pois ele tem a característica de alterar o DNA das células. O vírus possibilitou que a NLSC produzisse a proteína necessária para combater o glioblastoma”, esclarece o professor da UFMG.

Segundo o biólogo pesquisador Tiago Góss, do A. C. Camargo Cancer Center, hospital referência em oncologia no Brasil, a terapia celular, técnica em que se enquadra o trabalho com a NLSC, é uma proposta que há muito tempo tem sido trabalhada por pesquisadores. “Ela consiste em tratar uma doença usando células, no caso células-tronco, sendo de preferência do próprio paciente. Com relação ao glioblastoma, existem relatos de pesquisas que fizeram trabalhos usando células-tronco para interferir na progressão do tumor”, diz.

Terapia restrita

Birbrair ressalta que os tratamentos disponíveis para o glioblastoma ainda têm muitas limitações. Uma opção é removê-lo cirurgicamente, porém, como ele desenvolve tumores satélites, pequenos carcinomas nas extremidades do cérebro, a possibilidade de sobrar partes afetadas é alta. Os pedaços que ficam, mesmo pequenos, são suficientes para gerar novos cânceres. Se a área afetada for muito grande, a tentativa de remoção total pode causar lesões permanentes.

Há a possibilidade de eliminá-lo por meio da quimioterapia, injetando medicamentos antitumorais na veia ou ingerindo-os em comprimidos. Esse método, porém, também é pautado por dificuldades, já que, na circulação sanguínea, os medicamentos encontram a barreira biológica formada pela membrana hematoencefálica, que filtra as partículas dos antitumorais antes de chegarem ao cérebro.

Uma solução seria injetar medicamentos diretamente no tumor. “Além de ser uma maneira muito invasiva, quando injetamos a droga no tumor primário, ela se concentrará apenas nele. Na periferia do cérebro, o antitumoral chegará em menor intensidade e, provavelmente, não tratará os tumores secundários. Outra solução seriam múltiplas injeções, porém, não há como garantir que elas atingirão a extremidade. E a quantidade excessiva de drogas pode matar células saudáveis”, relata o pesquisador.

Sobre a possibilidade de a pesquisa vir a se consolidar como tratamento efetivo no combate ao glioblastoma, Góss ressalta que ela se encontra em uma fase muito experimental. “Basicamente, com células em cultura in vitro”, explica. “É necessário fazer mais experimentos em animais e, depois, em humanos, com dados robustos para mostrar que, de fato, diminui o tumor na presença da célula criada”.

Mais comum em homens
Um estudo feito há dois anos pelo Instituto Nacional de Câncer (Inca) mostra que o glioblastoma representa cerca de 40% a 60% de todos os tumores primários do sistema nervoso central (SNC), sendo mais comum na vida adulta. No Brasil, de  2015 a 2016, foram registrados 5.400 novos casos desse tipo de carcinoma, sendo que entre 2 mil e 3 mil eram de glioblastoma.

A pesquisa do Inca mostrou também que a incidência dos tumores cerebrais é ligeiramente mais alta no sexo masculino e, quanto maior o nível socioeconômico da pessoa, maiores são as taxas de incidência desse tipo de tumor. As causas do aparecimento de tumores do SNC ainda são pouco conhecidas, tendo apenas alguns fatores identificados, como a irradiação de raios X. Traumas físicos na região da cabeça e traumas acústicos, como casos de trabalhadores expostos a alto nível de som e ruídos, também são possíveis fatores de risco.

O glioblastoma é um tipo de câncer complexo por vários motivos. Alexandre Birbrair, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), explica que ele se instala no centro do cérebro e sua tendência de formar metástases rapidamente dificulta os tratamentos. Outro fator complicador é a presença de uma membrana protetora no órgão, a hematoencefálica, que filtra a chegada de medicamentos. O prognóstico não é bom. A maior parte dos pacientes tem baixa sobrevida depois do diagnóstico, de poucos meses.

De 2 mil
a 3 mil
Estimativa de casos de glioblastoma descobertos no Brasil entre 2015 e 2016, segundo o Instituto Nacional de Câncer (Inca)